11.25.2008

LER - PARTE III

«A CRIANÇA QUE NÃO QUERIA FALAR»
Torey Hayden
Editorial Presença

«Os olhos encheram-se-lhe subitamente de lágrimas, que começaram a escorrer pelas faces até ao queixo. Contudo, manteve-se imóvel e sem pestanejar, sem deixar de apoiar o rosto nas mãos. Faltaram-me as palavras. Esquecia-me muitas vezes que ela tinha apenas seis anos. Só faria sete anos em Julho. Esquecia-me por causa do seu olhar, tão velho.
Pousou lentamente as mãos em cima da mesa e baixou os olhos. Manteve-se assim um momento, sem limpar as lágrimas, que continuavam a correr em silêncio. Depois levantou-se, virou-me as costas e dirigiu-se ao outro extremo da sala, onde se sentou no meio das almofadas, no chão. Escondeu a cara entre as mãos. Não emitiu qualquer som.
Fiquei no meu lugar sem pronunciar uma palavra, sentindo vivamente a sua dor e que também era, suponho, o meu próprio sofrimento. Será que me envolvera demasiado? Apesar dos seus visíveis progressos, tornara-se demasiado dependente de mim? Devia tê-la deixado como a encontrei em Janeiro, limitando-me a ensiná-la, em vez de acostumá-la a gestos diários de ternura?
Os meus colegas sempre me haviam considerado uma marginal. Pertencia àqueles que preferem amar e sofrer, o que não é um princípio muito popular na educação. Os cursos, os especialistas, acautelavam-nos contra o envolvimento afectivo. Mas isso era superior às minhas forças. Não conseguia ensinar eficazmente sem me envolver e, exactamente porque pertencia aos que optam por amar e sofrer, estava preparada quando chegava a altura da separação. Era sempre doloroso, e quanto mais amava uma criança, mais doloroso se tornava.
Contudo, quando chegava o momento da separação, ou quando, muito honestamente, tinha de renunciar a essa criança por não poder fazer mais nada por ela, conseguia fazê-lo. Conseguia fazê-lo, porque guardava sempre no meu íntimo a recordação inestimável do que havíamos vivido, convicta de que as boas recordações são o bem mais precioso que se pode dar a outra pessoa. Nada do que pudesse fazer por Sheila, mesmo que a acompanhasse ao longo de toda a sua escolaridade, lhe daria a felicidade. Só ela conseguiria obtê-la. Tudo o que podia dar-lhe era o meu amor e o meu tempo. Quando chegasse o momento, a separação seria dolorosa. No final, os meus esforços ficariam reduzidos mais uma vez a recordações.
Todavia, ao observá-la, disse de mim para mim angustiada, que não tivéramos tempo bastante para curar totalmente as feridas dela, que talvez ela não tivesse a força suficiente para tolerar a minha dolorosa forma de ensinar. Na verdade, ao passo que este método me convinha, não estava a ser injusta, por não lhe dar outra escolha? Mas o que devia ter feito? Sentia o coração despedaçado ante a ideia de que recebera a criança errada, aquela que ferira, em vez de ajudar. Um comportamento utópico era sempre, obviamente, possível na teoria. Só que na prática, mais vale o conformismo - é menos arriscado.
Levantei-me devagar e aproximei-me dela, que continuava em silêncio, apenas fungando.»
LP

4 comentários:

Yolanda disse...

Mais vale fazer parte dos que "preferem amar e sofrer", pois sendo o contrário, é fazer parte dos "ocos", frios, sem entrega e amor por aquilo que fazem, ... .

andré matos disse...

Acredito que em cada amigo que fazemos, roubamos dele algo imaterial. Mais que a sua amizade e o seu apreço, um pedaço do seu conhecimento.
E com cada um dos amigos, aprendemos algo mais.
Talvez seja melhor sofrer por eles, e crescer.
Do que ser alguém oco.

cris disse...

Nós tivemos a grande sorte de ter um dos que prefere "sofrer e amar" a cruzar-nos o caminho.

E é por isso, que sofremos tanto, que amamos tanto...


A saudade do nosso tempo hoje atacou-me mais que o normal. Só me apetece ir ter com cada um de vocês e dar-vos um abraço!

Cass disse...

Ler todos estes posts ao som desta música traz tantas recordações!
Todas estas palavras nos são familiares, tocam-nos sem nunca antes as termos lido ou ouvido, porque as vivemos, porque as sentimos e são, inevitávelmente, também as nossas palavras!
Melhor do que ninguém sabemos o que é a despedida, não que eu tenha ido para longe, mas muitos foram para longe de mim! As saudades são muitas, apertam, e às vezes dou comigo a lembrar me de coisas tão palermas e, ao mesmo tempo, tão marcantes, que fizeram com que estes 3 anos na Secundária com as turmas 10/11/12º ABC e com o Professor Luís Pica ivessem sido os melhores anos da minha vida, até então...

...

Cláudia Sequeira*